Jogo do Tigrinho: um problema também de UX
Entendendo o problema e também o nosso papel como UXers na criação de interfaces éticas e focadas em agregar valor aos usuários.
Recentemente, o Banco Central divulgou uma pesquisa com dados alarmantes sobre apostas em Bets digitais. Segundo a pesquisa, em agosto de 2024, a população que recebe Bolsa Família apostou 3 bilhões de reais em bets via Pix. No total, 20,8 bilhões foram gastos.
Bolsa Família representa 14,4% deste total.
Bets no Brasil
Falando sobre aspectos históricos, jogos de aposta não eram legais no Brasil, mas voltaram à uma certa legalidade (mas sem regulamentação) com o último Decreto assinado pelo então presidente Temer, em dezembro de 2018.
Os governos Temer e Bolsonaro, somados com os anos de pandemia, foram períodos marcados pela precarização de pautas sociais – criando uma sensação de desamparo, de cada um por si, e de que não se pode contar com o governo –, que pode ter propiciado a sensação de que os jogos seriam uma das poucas opções para que as pessoas possam sair dos seus problemas financeiros.
Os Millenials são uma das gerações mais pobres da história – basta olhar a diferença entre nossos pais e avós e a realidade deles sobre comprar um imóvel – e a situação não tem ficado mais fácil para as gerações seguintes. De modo geral, a ideia de que, com um emprego, se tenha uma vida de qualidade (comer, morar e descansar), está cada vez mais distante – assim como aposentadoria e segurança do trabalho.
O Brasil, de modo geral, já tem problemas históricos com jogos de aposta e fraudes, seja em jogos esportivos, lotéricas, jogo do bicho, e por aí vai… mas desta vez, a diferença é a facilidade com a qual as pessoas podem acessar uma aposta no Jogo do Tigrinho (vou me referir a ele carinhosamente como JT). Com um celular em mãos, alguns toques na tela separam um usuário de vícios e dívidas. E nós, UXers, ou criadores de soluções digitais, estamos diretamente ligados com a forma como as pessoas interagem com esse tipo de produto em diversas frentes.
A ideia deste artigo é falar sobre algumas delas, então vamos lá:
Interfaces Atrativas
O primeiro aspecto (e talvez o mais óbvio deles) tem a ver com a interface ser colorida, atrativa, com muitas animações, cores vibrantes e baixa demanda cognitiva.
Talvez essas sejam boas demandas para melhorias gerais de UX em qualquer tipo de interfaces, mas é importante lembrar que aqui estamos falando de aspectos também éticos e sócio-econômicos, que por mais que não sejam de responsabilidade direta do profissional de design, acabam passando indiretamente.
Gamificação de Apostas
Indo mais a fundo na questão, outro aspecto é a comunicação visual de um jogo. Talvez, ao olhar a tela acima, você – por mais que nunca tenha utilizado o JT– o assimila com como outros jogos aparentam esteticamente. Essa é uma das estratégias utilizadas para buscar manter um engajamento dos usuários com a solução.
UX Writing
Outra questão bastante problemática é a comunicação textual, que se refere como um jogo, ou bet (“aposta", em inglês) também se referindo às apostas com o verbo “brincar", e mais recentemente, diante das primeiras polêmicas das apostas, o uso de termos como “jogo responsável".
A comunicação textual está diretamente ligada com a forma como os usuários também vão se referir às ações tomadas, e ao que vão relacioná-las, por isso é importante que as pessoas responsáveis por marketing, comunicação geral e conteúdo tenham um alinhamento entre si, e também com o branding geral da empresa.
No caso dos termos citados acima, é possível entender que nestes casos há sim, alinhamento, mas não há uma preocupação com os usuários, e sim com o lucro da plataforma.
Gatilhos Mentais
Talvez o aspecto mais danoso do JT é justamente aquele que não está diretamente “na cara", e aqui eles usam diversas estratégias com gatilhos mentais.
Antes de mais nada, gatilhos mentais são estímulos psicológicos que visam encontrar atalhos no nosso cérebro na hora da tomada de decisão, fazendo com que pensemos menos e tomemos ações mais instintivamente.
Prova social: esse é o gatilho no qual nós nos deixamos guiar na tomada de decisão porque outras pessoas já tomaram essa decisão antes. Neste quesito, o JT abusa do conteúdo de influenciadores no Brasil (muitos deles sendo investigados por fraude financeira);
Urgência: aqui, tomamos decisões porque a nossa janela de tempo vai acabar, então é comum ver algo como “esse bônus em dinheiro só vale se você apostar nos próximos 15 minutos!" ou “só hoje". E aqui, o JT utiliza esses bônus juntamente com estratégias jurídicas, atrelando o saque deles à termos (que os usuários, por sua vez, não leem) e atrelam o recebimento do dinheiro a gastar todo o bônus recebido, o que aumenta a chance de viciar.
Escassez: este gatilho visa influenciar os usuários ao comunicar que algo bom só vai acontecer a um número limitado de pessoas, exemplo: “bônus de R$500 apenas para os próximos 100 jogadores que clicarem aqui". E segue a lógica do gatilho da urgência.
Antecipação: uma vez que tomamos uma ação e temos uma recompensa, este gatilho (que age muito fortemente também a nível hormonal) libera dopamina no cérebro na esperança de que a próxima ação também seja recompensada – mesmo que não exista um prêmio –, e isso é uma das bases para a dependência/vício em jogos.
Além dos gatilhos mentais citados acima (e dos demais não citados), o JT também faz uso dos padrões obscuros (ou Dark Patterns, em inglês), ao facilitar ações desejadas e dificultar indesejadas.
Por exemplo:
Facilita: cadastro do Pix e conexão com a conta bancária;
Dificulta: o entendimento de diferentes saldos, o saque do dinheiro e fechamento da conta.
Estes padrões iludem os usuários e passam dos limites éticos de UX Design –porém, por tudo ser absolutamente novo, ainda não existem limites legais que os enquadrem como crimes.
Os padrões obscuros também mexem com o nosso cérebro a nível hormonal, e talvez o aspecto mais profundo é o uso do reforço intermitente como estratégia de negócios.
Reforço Intermitente
Reforço intermitente é o termo cunhado para se referir à aleatoriedade na qual uma ação gera recompensa, seja ela positiva ou negativa.
Como já falei no gatilho da antecipação, o cérebro de alguém que já usa o JT está imerso em dopamina, e não saber quando vai ganhar de novo se torna um ímã para apostar cada vez mais – e essa lógica tem o potencial de realmente modificar nosso comportamento. Aliado aos gatilhos mentais e outras práticas de UX, torna o JT uma interface realmente perigosa.
Aliás, essa não é uma lógica nova, alguns exemplos digitais “comuns" que ficaram famosos por utilizar o reforço intermitente:
O botão de curtir, que surgiu no Facebook, mas hoje está em todos os lugares…
O arrastar para a direita, do Tinder;
Os scrolls infinitos, nos quais nunca sabemos se o próximo vídeo do TikTok será bom ou não, por isso seguimos descendo;
Existem muitos outros exemplos, inclusive fora do mundo digital e dentro de outros aspectos da nossa vida, como educação, relacionamentos… e é importante lembrar que essa prática funciona tanto para o bem quanto para o mal, e por isso é importante termos em mente de onde estamos investindo nosso tempo (e dinheiro).
Efeitos a nível hormonal
A questão da dopamina da forma como ela é explorada por soluções como o JT é que ela além de se tornar viciante, também faz com o que nossos receptores percam a sensibilidade, exigindo que apostemos cada vez mais.
Esta perda de excitação causada pela dessensibilização também tem a ver com outros hormônios, como o cortisol (ligado ao estado de alerta e stress, que aumenta) e a serotonina (ligada à regulação de sentimentos de bem estar, que diminui). E por isso a exposição prolongada a experiências estimulantes, como a do JT pode causar: stress, ansiedade, depressão, e até problemas cardíacos
Finalmente, uma questão da dopamina, que está diretamente ligada ao gatilho da antecipação, é que pensar no jogo já causa um pico do hormônio e, da mesma forma, os usuários tem uma forte queda na sequência de jogar. Com a evolução, estes picos e quedas vão ficando cada vez maiores e difíceis de lidar – porém tem sim cura.
Inclusive, se você, ou alguém que você conhece, precisa de ajuda para lidar com o vício em jogos, procure ajuda com o Jogadores Anônimos. Lembre-se que esses jogos são um projeto feito para que você vicie.
O que precisa vir pela frente?
A falta de regulamentação é claramente o principal motivo pelo qual o Brasil chegou até aqui. Infelizmente, das esferas sociais, a legislativa sempre é a mais lenta. Entretanto, diante do cenário preocupante, o Governo Federal diz estar atuando para organizar uma regulamentação, ou até acabar definitivamente com as bets.
Um dos projetos é de que os sites tenham registros dos apostadores, na esperança de que o governo possa acompanhar seu histórico para tentar assegurar alguma saúde mental ou financeira – cá entre nós, mais remediando do que prevenindo.
Um aprendizado que também fica é que cada vez mais as empresas estão entendendo sobre como utilizar de recursos que afetam diretamente a mente dos usuários, e, como UXers, é nosso papel entender sobre estes impactos negativos para poder rejeitar este tipo de trabalho e trabalhar justamente na criação de experiências benéficas para usuários, comunidades, sociedade e para o mundo.